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Sobre a riqueza de um instante

Blog escrito pelos psicólogos da Psinove. Exploramos temas relacionados com a psicologia e psicoterapia, desafios e reflexões do dia-a-dia.

Sobre a riqueza de um instante

Hoje de manhã saí para ir aos correios. De regresso a casa, encontrei duas senhoras nos seus oitentas que, num banco de betão à frente de um centro comercial, vendiam, em saquinhos de congelação, uma quantidade modesta de nêsperas. Ao sol, descontraídas, conversavam e se calhasse, lá vendiam um saquinho. Apesar de astutamente terem montado ali o estaminé - logo no dia em que por cá reabriam as lojas - quem as visse diria que estavam felizes só por existirem naquele momento, uma com a outra, com o ruído da normalidade como fundo.

Não fizeram grande caso da minha presença e quando notaram que estava a cobiçar as nêsperas tiraram mais um saquinho para juntar aos três de onde poderia escolher. “São todas boas e docinhas, mas estas são capazes de estar mais maduras”, dizia-me uma das senhoras. Comprovei mais tarde que era um bom palpite, mas naquele instante importava-me pouco a qualidade da fruta. Dei por mim a conversar, de sorriso nos lábios, com uma velhota que parecia vinda da Beira - com a bata e tudo, que me lembrou a minha avó - e sentia as bochechas quentes do sol, o nariz a adivinhar a doçura das nêsperas e um burburinho reconfortante à volta.

Parecia que uma parte minha se tinha esquecido de como usar os sentidos para viver no mundo, talvez como consequência das muitas horas em teletrabalho e isolamento q.b.. De súbito, notava e sentia as várias frações da experiência de estar ali: entusiasmo, curiosidade, esperança... enternecimento. No caminho de volta, esforcei-me por identificar e preservar essas sensações durante mais uns minutos no meu corpo, como quem fecha os olhos para tentar regressar a um sonho bom. Consegui, mais ou menos.

De vez em quando tropeço nesta constatação: é realmente difícil aguentar e explorar dentro de nós emoções agradáveis. É relativamente simples perceber a um nível cognitivo se algo é “bom” ou “mau” e até, se formos um pouco mais psicologicamente versados, empregar outras palavras. Chegamos a usar inadvertidamente o verbo sentir para falar sobre o que pensamos ou fazemos, mas a distância mantém-se. Incorporar as emoções é difícil. Portanto, não é invulgar que algumas das nossas experiências positivas – por vezes, até as que poderiam ser mais marcantes - ocorram no ramo do que é puramente conceptual. Como se ficássemos felizes com o cérebro, mas não com o coração. E também não surpreende que uma consequência disso seja uma espécie de síndrome de Peggy Lee, em que, desiludidos nos perguntamos - is that all there is?

Esta amnésia experiencial das emoções que nos sabem bem é um infortúnio que, de uma maneira ou de outra, acaba por tocar as nossas vidas sem nos darmos conta. De facto, já várias vezes escutei a tristeza e frustração dos meus clientes perante a dificuldade em se sentirem verdadeiramente satisfeitos com as suas conquistas profissionais, ou com os seus hobbies, ou com algumas partes da sua vida que “deveriam” trazer emoções agradáveis ao de cima.

Estar de forma plena com sensações “boas” não é algo que surja em nós com naturalidade. Poderia propor algumas explicações, mas penso que a mais abrangente será a de que socialmente somos profundamente orientados para a produtividade. Se, na maior parte dos contextos, parar para notar que estamos zangados ou ansiosos é perder tempo, compreende-se de que forma parar para reparar que nos sentimos calmos, satisfeitos ou orgulhosos é um atrevimento ainda maior. Como consequência, vamos desaprendendo a estar com estas emoções ou então a reconhecê-las só de passagem, como conceitos familiares.

A imagem que me surge é a de uma viagem de comboio entre duas cidades. Nessa viagem, é difícil desfrutar da paisagem porque queremos muito chegar ao destino. Se for preciso, até aproveitamos para passar pelas brasas para ver se isto vai mais depressa. Esperamos que, na chegada, tudo seja melhor: mais feliz, mais leve, mais perto das nossas necessidades. Só que, quando chegamos, é preciso apanhar outro comboio, para outra cidade um pouco mais longe. E assim sucessivamente.

O paradoxo é que na procura mais cerebral e conceptual das emoções agradáveis, perdemos o processo através do qual é possível criar espaço para que elas se possam fazer sentir. Queremos a satisfação e o prazer, mas negligenciamos os pequenos lugares físicos e temporais onde podem florescer. É que as emoções moram nos sentidos, nas perceções, nas ligações invisíveis que a realidade estabelece com o nosso corpo, a cada momento.

Aquilo a que chamamos felicidade existe, assim, na vivência presente e consciente de todas as emoções, mas em especial das prazerosas. Para a maior parte das pessoas, onde me incluo, este é um processo que envolve alguma aprendizagem, treino e paciência. Mas, aos poucos, vai ficando mais fácil.

Na realidade comecei este devaneio todo por causa de outra constatação, onde tropeço menos vezes:

Se nos permitirmos a sentir – e não tanto a perceber – tornamo-nos mais permeáveis à alegria e ao conforto das coisas simples de cada experiência. Parece muito evidente, mas a felicidade e o bem-estar não se medem mesmo aos palmos. Porém, se for para medir em quilos, era um de nêsperas, se faz favor.


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